Dossiê HSM

Dois líderes e suas histórias de coragem

A coragem é uma habilidade particularmente relevante nas pessoas que lideram – leões não faltam na arena corporativa, afinal. E ela é essencial no caso de líderes que assumem projetos de transformação e impacto em suas organizações

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A coragem faz parte do imaginário popular. Da literatura ao cinema, sobram exemplos de pessoas que desafiam padrões e lidam com o perigo. Mas como as lideranças manifestam a coragem no cotidiano? Afinal, enfrentam os leões corporativos, que ficam ainda mais agressivos com mudanças no território, como a chegada necessária do ESG às organizações.

__HSM Management__ conversou com duas lideranças acostumadas a levar adiante projetos de impacto nas organizações. Luís Fernando Guggenberger é gerente executivo de marketing, inovação e sustentabilidade da Vedacit, mas com uma longa carreira atuando em projetos relacionados ao terceiro setor.

Valéria Militelli é diretora global de sustentabilidade e assuntos corporativos do Grupo Ultra. Ao longo de sua trajetória, precisou enfrentar diferentes adversidades – inclusive a de ser uma mulher em ascensão – para transformar as empresas por onde passou. Ela conta como domou as feras.

## Guggenberger: dar o passo da fé
Distante 45 quilômetros de Santarém, no oeste do Pará, o município de Belterra tem um papel crucial na trajetória do paulistano Luís Fernando Guggenberger, hoje executivo na Vedacit. Especialista no terceiro setor, ele trabalhava no Instituto Vivo nos anos 2000, analisando projetos de impacto social e ambiental apresentados por ONGs.

A tarefa era árdua: em cada dez propostas, oito não cumpriam as especificações exigidas nem alcançariam os resultados prometidos. O proposta de Belterra, porém, estava entre as exceções, mas a diretora de responsabilidade social, com pouca experiência em terceiro setor, estava irredutível. “Ela não conseguia enxergar o quanto aquele projeto seria importante no futuro da comunicação da companhia”, lembra Guggenberger. “Fui direto ao ponto. Sugeri fazermos uma imersão de quatro dias na comunidade e, se depois disso ela achasse que o investimento não valia a pena, eu encerraria a conversa.”

A soma de seu olhar apurado para a comunidade com o viés de negócio da diretora resultou na construção de um projeto que levou dois tipos de comunicação 3G para Belterra. “O Conexão Amazônia nos permitiu coletar indicadores comerciais e de impacto socioambiental que embasaram um estudo ampliado, levado pelo presidente Roberto Lima para o conselho de administração”, conta. “Um projeto mais ambicioso, que tinha por objetivo expandir a rede 3G no Brasil para 2,3 mil municípios.” Não foi fácil. O desenvolvimento do projeto coincidiu com a fusão da Telefonica com a Vivo, e a Fundação Telefonica tinha uma cultura mais conservadora, com visão distorcida do social.

Um dia marcante para o executivo foi quando o Conexão Amazônia estava sendo massacrado em uma reunião e ele foi obrigado a agir com firmeza. “Minha coragem nesse momento foi de me desprender do projeto e dizer: aqui está, se quiserem derrubar, derrubem. Mas saibam que se abortarmos o trabalho, quem sairá perdendo será a comunidade, será a própria empresa, porque isso aqui é o símbolo de toda a conectividade que começamos a viver no País.” Deu certo. O projeto vingou e foi estendido a várias regiões do Brasil.

Na visão de Guggenberger, ter mais ou menos coragem para ir adiante e levar a equipe junto na jornada está diretamente ligado ao resultado que a luta trará. Assim que chegou ao Grupo Vedacit, em 2018, ele abraçou o desafio, proposto pelo CEO Marcos Bicudo, de implantar uma área de open innovation. “Você imagina o que significa isso para uma empresa familiar, de um segmento conservador como o da construção civil?”, pergunta. “Por dois anos eu me transformei no ativista da inovação, da sustentabilidade. Não tinha como ser diferente. Eles me chamaram para ajudar a transformar a Vedacit, para provar que impacto social e ambiental é um bom negócio.” Assim nasceu o Vedacit Labs, primeiro programa de inovação aberta do mercado de impermeabilização, direcionado a startups do setor de construção civil.

Para ele, a coragem caminha lado a lado com a resiliência. Essa dupla foi colocada em ação ao propor um modelo muito inovador para ser aprovado por uma governança mais conservadora. Foram necessárias dezenas de horas de apresentação para o conselho de administração e seus comitês até que o primeiro programa de aceleração fosse aprovado. “Boa parte do resultado é decorrente de minha insistência, de minha coragem em construir alianças estratégicas e não deixar o assunto esfriar”, relembra. “No segundo ano, com a governança já envolvida, levei cinco minutos para aprovar a continuidade do programa.”

Para definir coragem, Guggenberger resgata um clássico do cinema. “Coragem é aquele primeiro impulso, traduzido na imagem clássica do Indiana Jones, quando ele está frente a um precipício imenso e dá o passo da fé. Nesse momento, surge a ponte para ele atravessar”, lembra. “Coragem é dar o primeiro passo. Pode ser que você tropece e caia, mas se tiver fé e muita convicção do que deseja, a tendência é levantar e seguir em frente.”

A energia colocada na criação de uma área de sustentabilidade bem estruturada na Vedacit começa a dar resultados. “Se eu não tivesse muita convicção de que era importante para o negócio, hoje não estaríamos buscando a certificação de empresa B”, diz o executivo. “Ter tido coragem para propor isso para a companhia nos coloca muito próximos de transformar a Vedacit em uma das primeiras empresas da área de construção civil da América Latina a ser certificada pelo Sistema B”, que reúne empresas que equilibram propósito e lucro, levando em conta o impacto para trabalhadores, clientes, fornecedores, comunidade e meio ambiente.

Ser corajoso, para Guggenberger, também é ser um pouco visionário, vendo lá na frente para onde se quer guiar a vida e os negócios, algo que consome energia e exige disposição. Ele garante que não é fácil e, por isso, recomenda contar com estruturas nas quais se apoiar e não esmorecer. No caso dele, a leitura e um programa de coaching vêm cumprindo esse papel. Outra referência vem do esporte. “Sou muito parecido com o Bernardinho, do vôlei: vou para cima, compro todas as brigas que acredito que levarão a uma melhoria para o negócio”, confessa. “Coragem é o que me impulsiona a fazer acontecer, lá na frente, a visão que percebi.”

## Militelli: movida a desafios
Desde a adolescência, Valéria Militelli sabia que não trabalharia na empresa da família; movida por desafios, queria trilhar os próprios caminhos. Administradora com pós-graduação em terceiro setor, essa determinação a levou para vários países. Uma carreira em que, não raro, era a única mulher nas negociações.

Militelli trocou a efetivação do estágio na Kodak para ser trainee na área de cacau e chocolate da gigante Cargill. Ciente dos desafios e responsabilidades, adotou estratégias para disfarçar a juventude – guarda-roupa mais sóbrio e comportamento mais austero. Não poupou esforços para se capacitar além do que a função pedia – e assim ganhar o respeito de pares e clientes. “Para mim, parte da coragem vem da preparação. Quando se está bem-preparada, vemos os desafios com mais segurança”, afirma. Até que foi desafiada a estruturar a área de sustentabilidade da empresa, que fez dela um dos nomes fortes no setor, a ponto de ser convidada pela Johnson & Johnson para repetir o feito.

Em 2021, aos 55 anos, a coragem voltou a ser necessária para criar do zero três áreas de impacto no Grupo Ultra, controlador das empresas Ultragaz e Ipiranga: sustentabilidade, comunicação e relações institucionais. É sua primeira experiência em uma empresa 100% nacional e com atuação exclusiva no mercado brasileiro. Com segurança, ela detalhou nesta entrevista a __HSM Management__ como a coragem faz parte da rotina das lideranças.

### Você começou muito jovem. Juventude e coragem andam juntas?
__Militelli:__ Sobra energia no jovem e ele vai fazendo, às vezes sem medir consequências. A maturidade, porém, ajuda a avaliar melhor quais brigas você deve comprar e o quanto de energia usar em cada jornada. Hoje, não olho apenas o objetivo; procuro entender o caminho a ser percorrido até o resultado. Isso me ajuda a construir novas estratégias.

### E quais brigas valem a pena ter coragem para comprar?
__Militelli:__ Uma vez, eu preparei um gráfico que fazia a projeção das emissões de carbono equivalente. E a notícia não era boa, pois demonstrava crescimento, mas não endereçava o problema maior. Todos me aconselharam a não mostrar para o conselho estatutário do Grupo Ultra. Eu dizia: “isso é um diagnóstico, é bom saber em que estágio nos encontramos para poder endereçar corretamente”. Banquei, apresentei na reunião e ficou todo mundo estarrecido com o cenário. Levei duas cacetadas duras, que sabia que aconteceriam, mas prossegui. Teria sido muito mais fácil eu não ter mostrado a fotografia, mas não teria cumprido meu papel. É esse tipo de briga que eu compro hoje.

O que me dá coragem não é só o objetivo final, é o propósito da causa, que tem muito a ver com o senso de responsabilidade por minha origem e pelas oportunidades que tive. Isso me coloca em uma condição que não me permite ser passiva. Para muitas pessoas isso é possível, para mim não é.

### E como foi chegar ao Grupo Ultra?
__Militelli:__ Para muitas pessoas foi um ato de loucura; para mim, mais um desafio a ser vencido. Eu sou movida a desafios. Fui contratada em janeiro de 2021, no meio da pandemia, para implantar as áreas de sustentabilidade, comunicação e relações institucionais na holding Ultrapar e em cada uma das empresas do grupo, com seus diferentes estágios e peculiaridades. Foram mais de 250 pessoas divididas em grupos de trabalho para formar metas, desenhar processos. Precisei de coragem para desbravar um setor sobre o qual eu não tinha nenhum conhecimento. Aceitar o convite de outra empresa de alimentos seria permanecer na zona de conforto. Montar uma área do zero em um setor novo acendeu a chama do aprendizado.

### Até que ponto a coragem da liderança impacta o comportamento da equipe?
__Militelli:__ O líder deve incentivar seus liderados a ter coragem para defender suas crenças e caminhar junto com eles. Para a equipe do novo projeto, eu disse: a caneta está em nossa mão para propor metas, KPIs e mostrar nossa ambição. Ninguém queria falar, se expor. Nessa hora, cabe ao líder provocar. Fiz isso em várias reuniões. Mesmo assim, os objetivos eram muito modestos. Fui dura, pedi metas mais arrojadas e provei que era preciso ter coragem para ir adiante, deixar o conservadorismo de lado. Na construção das metas, precisou coragem para colocá-las num nível que realmente espelhasse ambição de evolução. Essa era a minha agenda. É óbvio que tudo tem de ser realizado com muito tato, mas tem de ser feito.

Na minha visão, a coragem também permeia as pequenas questões. É óbvio que grandes desafios a tornam mais evidente. A maioria das pessoas vê a coragem como algo muito grande, mas eu não penso assim. Desafiar um processo, no alcance de sua posição, pode ser um ato de coragem. Sempre procuro incentivar minha equipe a pensar que eles podem. Tem gente que acredita que não tem direito a desafiar nada. Todo mundo tem esse direito! Pequenas coisas fazem muita diferença.

### Como ter coragem em culturas mais conservadoras e hierárquicas?
__Militelli:__ O aculturamento nessas organizações tem um peso muito forte, e as pessoas vão se aparando nesse processo. Eu desafiei algumas vezes essa lógica, e as lideranças ficavam muito assustadas. Em minha equipe, nova de casa, vi esse mesmo comportamento de não se expor. Eles estavam repetindo padrões ouvidos pelos corredores e, por conta disso, criavam barreiras de proteção. Eu fui firme. Nós somos uma área nova, que precisa ser inserida no mapa da companhia e, para tanto, precisamos ocupar nosso lugar na mesa ou não conseguiremos influenciar a transformação que a empresa pediu para fazermos. Deixei claro que precisavam ter mais coragem, embasados, e que eu estaria ao lado dando respaldo. Porém, para isso, era preciso dar um passo à frente, e não um para trás, ancorados em um histórico do qual eles não fizeram parte.

### O que nutre sua coragem? Onde você encontra apoio e busca forças?
__Militelli:__ Grandes exemplos, como a Ana Fontes, da Rede Mulher Empreendedora. O trabalho dela é inspirador, nos alimenta de coragem porque mostra que é possível. Meu pai foi e ainda é meu grande mentor na vida e nos negócios. Roberto Waak e Marco Fujihara são duas pessoas cujas opiniões de fato importam na pauta de sustentabilidade. A troca de experiência em redes como a Responsible Leaders Global, da Fundação BMW Herbert Quandt, e a Liga dos Intraempreendedores, da qual faço parte globalmente. Essas redes foram e são eixos importantes para que a “solidão” corporativa seja menos sentida.

__Leia mais: [Só valentão muda de carreira ou profissão?](https://www.revistahsm.com.br/post/so-valentao-muda-de-carreira-ou-profissao)__

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