Liderança

Economia comportamental, fadiga da quarentena e retorno ao trabalho

Mais de 100 dias depois que a Organização Mundial da Saúde declarou oficialmente a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), o mundo ainda está buscando entender o que causou a doença.
Especialista em Economia Comportamental e sócia da consultoria InBehavior Lab

Compartilhar:

Embora mais de uma vacina já esteja em estado avançado de desenvolvimento, líderes e cidadãos dos cinco continentes seguem lidando com as consequências e transformações provocadas pelo vírus, que já contaminou mais de dez milhões de pessoas e matou 500 mil.

No Brasil, desde o primeiro caso confirmado, em março, já temos mais de 1,6 milhão de pessoas contaminadas e mais de 60 mil mortes. Ainda assim, a exemplo de outros países que foram mais ou menos atingidos, a volta à normalidade já é assunto na boca de governantes e cidadãos – mesmo que, ao contrário da Europa ou Ásia, por aqui a curva de contágio ainda não tenha dado sinais de ter baixado.

Um dos motivos para que as pessoas desejem voltar à vida normal, mesmo sem evidências de que a doença esteja arrefecendo, é investigado pelas ciências comportamentais.

Trata-se da “fadiga comportamental”: as pessoas literalmente cansam de repetir as mesmas atitudes restritivas (no caso, cuidados com higiene, distanciamento social etc.) durante muito tempo. No caso da pandemia, a mudança da vida normal para a quarentena também foi muito brusca, o que exigiu ainda mais energia mental.

No início e com a perspectiva do “só mais essa semana”, aguentamos o esforço, tanto pela nossa saúde quanto pelo bem dos outros e dos que amamos. Porém, depois de mais de três meses de isolamento, as pessoas começam a relaxar nos cuidados: não mais aplicam álcool gel com tanta frequência ou deixam de higienizar as compras, por exemplo. E passam a se questionar: caso esses sacrifícios sociais e econômicos não fossem tomados, a situação não seria a mesma?

Cedo ou tarde será hora de planejar a retomada para o trabalho presencial. E nada será como antes, principalmente no início, enquanto os protocolos de higiene e distanciamento forem a regra.

Nesse caso, especificamente para grandes escritórios e indústrias, onde a aglomeração e a alta circulação de gente sempre ocorreram, os departamentos de comunicação interna e de recursos humanos deverão ter um cuidado redobrado no planejamento a fim de combater alguns vieses cognitivos e comportamentos que podem atrapalhar o cumprimento das normas sanitárias e comprometer a retomada das atividades econômicas.

## Vieses cognitivos podem influenciar o cumprimento das regras

O primeiro viés a ser levado em conta é o do status quo (ou viés da inércia). Trata-se da tendência humana de manter o estado atual das coisas. Passados três meses, as pessoas já se acostumaram em ficar em casa, seja sem trabalhar ou em home office (nesse caso, inclusive, o viés teve que ser combatido na transição entre o trabalho presencial e o remoto).

Em termos gerais, as pessoas não estão mais acostumadas à rotina do escritório. Portanto, será natural que elas se sintam deslocadas até que voltem a se adequar. Para o planejamento das empresas, é essencial aproveitar esse período para firmar um novo “acordo comportamental” a fim de garantir o cumprimento das novas normas. E também não esquecer de levar isso em consideração na hora de medir desempenho e produtividade.

Mencionei anteriormente a fadiga comportamental como um fator que leva as pessoas a relaxarem nos cuidados pessoais e desejarem com mais intensidade a volta vida normal. Outros vieses cognitivos, exemplificados por raciocínios, podem influenciar negativamente no cumprimento das regras:

● __Heurística da disponibilidade:__ “Não conheço ninguém que voltou ao trabalho e foi contaminado, logo, é seguro que eu volte também.”

● __Excesso de otimismo:__ “Faço exercícios e sou mais saudável do que a maioria, logo, estou mais preparado para enfrentar a doença.”

● P__referência a gratificação imediata:__ “Não aguento mais ficar em casa, prefiro correr o risco de ficar doente e ir trabalhar.”

● __Aversão à perda:__ uma consequência negativa traz mais descontentamento do que uma consequência positiva na mesma magnitude traz felicidade. “Perder o emprego importa mais do que me manter a salvo da doença.”

## Comunicação deve ser clara e objetiva

Dessa forma, os gestores devem reservar atenção e recursos especiais na hora de comunicar as novas regras dentro do escritório ou da fábrica. As empresas não devem repetir o que já foi feito por governos e órgãos de saúde: imposição de atitudes e repetição de normas e alertas.

Elas continuam valendo, mas o objetivo deve ser ir além e buscar exemplos de como as ciências comportamentais podem ajudar a encorajar ações e comportamentos necessários para manter um ambiente de trabalho seguro mesmo durante a pandemia.

Tendemos a ser muito vagos nos comunicados. “Lave suas mãos regularmente, mantenha distância social, comunique caso apresente sintomas, venha ao trabalho somente se precisar.” Embora objetivas, essas frases não deixam claro que tipo de comportamento deve ser seguido. Prefira seguir na linha: “Lave suas mãos depois das refeições, mantenha dois metros de distância do próximo, envie um e-mail para Fulano caso tenha sintomas, venha ao trabalho às segundas, quartas e sextas”.

## Nudges – pequenos empurrões para a mudança de comportamento

Um dos instrumentos da economia comportamental mais utilizados para se chegar a uma mudança positiva de comportamento é o nudge. Conceito teorizado por Richard H. Thaler, um dos pais da Economia Comportamental, o nudge tem como objetivo alterar o comportamento das pessoas de um modo previsível, mas sem proibir quaisquer opções e nem alterar significativamente seus incentivos econômicos.

Um experimento no Hospital Universitário de North Shore, em Long Island, Nova York, utilizou de incentivo social, recompensa imediata e acompanhamento de progresso para incentivar médicos e enfermeiros a lavarem mais as mãos.

Por meio de um sistema de monitoramento, um ponto era concedido a cada vez que um profissional lava as mãos. Conforme vão aumentando, os pontos vão sendo exibidos em um painel ao vivo. Com isso, os médicos passaram a lavar as mãos 90% mais vezes.

A especificidade das campanhas deve ser acompanhada por exemplos inequívocos. Lembre-se: as pessoas estão ansiosas para voltar ao trabalho, ao mesmo tempo em que se sentem exaustas pela quarentena.

A empresa precisa passar certeza e se comunicar a fim de deixar as expectativas claras. Tanto no teor dos comunicados (“Lave as mãos durante 50 segundos desta forma”, “Use máscara facial assim”), quanto nos locais (“Permitida a entrada de somente 4 pessoas neste elevador”, “Esta escada é apenas para descida”, “Este corrimão é limpo regularmente”).

Aliás, o ambiente é uma parte importante no processo de estimular e reforçar atitudes. Mudanças no ambiente físico geral incentivam mudanças de comportamento – se tudo estiver igual, as pessoas vão se comportar como antes.

Assim, sinalizações físicas e alterações no layout são essenciais para vencer o viés do status quo e apresentar algo novo frente à “fadiga comportamental”.
Em resumo, a necessária volta ao trabalho – ainda que mais ou menos distante em cada uma das regiões do Brasil – exige atenção especial das empresas.

A transição entre a quarentena em casa e o retorno ao escritório representa uma ruptura e traz consigo muitos vieses cognitivos. Apesar disso, oferece uma janela de oportunidade para que os gestores estabeleçam os novos protocolos e conquistem, com maior chance de sucesso, as mudanças comportamentais necessárias para que se mantenham a segurança e a saúde de todos.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Tecnologia & inteligencia artificial
1º de novembro de 2025
Aqueles que ignoram os “Agentes de IA” podem descobrir em breve que não foram passivos demais, só despreparados demais.

Atila Persici Filho - COO da Bolder

8 minutos min de leitura
Tecnologia & inteligencia artificial
31 de outubro de 2025
Entenda como ataques silenciosos, como o ‘data poisoning’, podem comprometer sistemas de IA com apenas alguns dados contaminados - e por que a governança tecnológica precisa estar no centro das decisões de negócios.

Rodrigo Pereira - CEO da A3Data

6 minutos min de leitura
Inovação & estratégia, Gestão de pessoas & arquitetura de trabalho
30 de ouutubro de 2025
Abandonando o papel de “caçador de bugs” e se tornando um “arquiteto de testes”: o teste como uma função estratégica que molda o futuro do software

Eric Araújo - QA Engineer do CESAR

7 minutos min de leitura
Liderança
29 de outubro de 2025
O futuro da liderança não está no controle, mas na coragem de se autoconhecer - porque liderar os outros começa por liderar a si mesmo.

José Ricardo Claro Miranda - Diretor de Operações da Paschoalotto

2 minutos min de leitura
Inovação & estratégia
28 de outubro 2025
A verdadeira virada digital não começa com tecnologia, mas com a coragem de abandonar velhos modelos mentais e repensar o papel das empresas como orquestradoras de ecossistemas.

Lilian Cruz - Fundadora da Zero Gravity Thinking

4 minutos min de leitura
Inovação & estratégia
27 de outubro de 2025
Programas corporativos de idiomas oferecem alto valor percebido com baixo custo real - uma estratégia inteligente que impulsiona engajamento, reduz turnover e acelera resultados.

Diogo Aguilar - Fundador e Diretor Executivo da Fluencypass

4 minutos min de leitura
Cultura organizacional, Inovação & estratégia
25 de outubro de 2025
Em empresas de capital intensivo, inovar exige mais do que orçamento - exige uma cultura que valorize a ambidestria e desafie o culto ao curto prazo.

Atila Persici Filho e Tabatha Fonseca

17 minutos min de leitura
Inovação & estratégia
24 de outubro de 2025
Grandes ideias não falham por falta de potencial - falham por falta de método. Inovar é transformar o acaso em oportunidade com observação, ação e escala.

Priscila Alcântara e Diego Souza

6 minutos min de leitura
Cultura organizacional, Gestão de pessoas & arquitetura de trabalho
23 de outubro de 2025
Alta performance não nasce do excesso - nasce do equilíbrio entre metas desafiadoras e respeito à saúde de quem entrega os resultados.

Rennan Vilar - Diretor de Pessoas e Cultura do Grupo TODOS Internacional.

4 minutos min de leitura
Uncategorized
22 de outubro de 2025
No setor de telecom, crescer sozinho tem limite - o futuro está nas parcerias que respeitam o legado e ampliam o potencial dos empreendedores locais.

Ana Flavia Martins - Diretora executiva de franquias da Algar

4 minutos min de leitura

Baixe agora mesmo a nossa nova edição!

Dossiê #169

TECNOLOGIAS MADE IN BRASIL

Não perdemos todos os bondes; saiba onde, como e por que temos grandes oportunidades de sucesso (se soubermos gerenciar)

Baixe agora mesmo a nossa nova edição!

Dossiê #169

TECNOLOGIAS MADE IN BRASIL

Não perdemos todos os bondes; saiba onde, como e por que temos grandes oportunidades de sucesso (se soubermos gerenciar)