Estratégia
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Estuarine Mapping: Conduzindo mudanças realísticas em contextos complexos e dinâmicos

Em ambientes complexos, planos lineares não bastam. O Estuarine Mapping propõe uma abordagem adaptativa para avaliar a viabilidade de mudanças, substituindo o “wishful thinking” por estratégias ancoradas em energia, tempo e contexto.
É Chief Scientific Officer na The Cynefin Co. Brazil e possui uma trajetória de pioneirismo com agilidade e complexidade. Teve trabalhos de grande destaque envolvendo a disciplina Agile Coaching, como a publicação do livro The Agile Coaching DNA, e introduzindo o conceito de plasticidade organizacional para comunidades e organizações. Na Austrália, esteve envolvido em iniciativas de transformação nas áreas financeira e de segurança civil, onde utilizou complexidade aplicada como base do seu trabalho. Mais recentemente foi Diretor de Business Agility para Americas da consultoria alemã GFT.

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Ao contrário do que se imagina, as empresas não são apenas um conjunto de fluxos lineares e unidirecionais. A dinâmica organizacional se revela através de um denso emaranhado de elementos que influenciam de maneira direta ou indireta os fenômenos do cotidiano de uma companhia.   No artigo anterior intitulado “Como ler contextos organizacionais através do mapeamento de Actants“, exploramos a necessidade de decompor ambientes em seus elementos gerenciáveis constituintes, que moldam os padrões de comportamento e decisão das pessoas. Contudo, a identificação desses elementos, embora rica e profunda, é a porta de entrada para decidir como agir em questões estratégicas e transformacionais. Portanto, uma vez que os actantes foram identificados, a etapa subsequente é avaliar, a partir do estado presente do contexto em questão, a viabilidade de modificar características organizacionais como processos, papéis, políticas ou qualquer elemento interno ou externo que esteja influenciando os resultados do contexto analisado. É neste ponto que o Estuarine Mapping tem se estabelecido como uma ferramenta crítica, oferecendo um método pragmático para avaliar a exequibilidade de mudanças, permitindo que líderes substituam o planejamento baseado em ‘wishful thinking’ por uma navegação mais tangível e capaz de se adaptar às mudanças na realidade de negócios de uma empresa.  


O que é um estuário no contexto organizacional?

A importância central da abordagem reside na sua metáfora fundadora. O planejamento estratégico convencional opera sob a metáfora de um rio, pressupondo um fluxo linear e previsível de um ponto A para um ponto B, onde um plano de projeto robusto é suficiente para garantir a chegada a um estado futuro definido. Esta visão tende a ser insuficiente em ambientes complexos, que se comportam menos como rios e mais como estuários. Um estuário é uma zona de transição dinâmica e turbulenta onde os fluxos de água doce do rio encontram as marés salgadas do oceano. No contexto empresarial, o rio simboliza elementos como forças internas, recursos e intenções da organização e, o oceano metaforiza temas como forças externas, pressões de mercado, ações de concorrentes e restrições regulatórias. Neste ambiente, os fluxos são multidirecionais, imprevisíveis e altamente dependentes do contexto. A metáfora do estuário estimula as lideranças a repensar a obsessão por objetivos finais fixos e adotar um senso adaptativo e dinâmico de direção, focando na gestão da energia existente do sistema para navegar as correntes atuais, em vez de tentar impor planos irrealistas contra a maré.


Qual a estrutura básica para avaliar a viabilidade de mudanças?

De uma maneira simples e direta, o Estuarine Mapping utiliza dois eixos críticos para fundamentar a avaliação da viabilidade de alterar qualquer actante: Energia e Tempo. O eixo da Energia (e) é uma análise holística que transcende o simples custo financeiro. Ele representa o dispêndio total de recursos organizacionais necessários para iniciar, executar e sustentar uma mudança. Esta energia inclui a atenção e o foco das pessoas, o esforço de mobilização e comunicação para superar a inércia cultural, os recursos alocados e, o mais importante, o capital político necessário para alinhar stakeholders e neutralizar resistências ativas. O eixo do Tempo(t), por sua vez, mede o horizonte necessário não apenas para a implementação técnica da mudança, mas para sua completa absorção e estabilização no sistema social, até que um novo padrão de comportamento se torne a norma.

Como é possível observar na figura abaixo, esses dois eixos fornecem uma fundação para analisar o custo de energia e tempo para produzir mudanças nos actantes identificados no contexto em questão.  Esse é um processo inclusivo e colaborativo que, de uma maneira acessível, engaja líderes e equipes na compreensão sobre o que é possível mudar agora e quais as estratégias para maximizar oportunidades existentes e minimizar riscos inerentes aos mais diferentes movimentos organizacionais possíveis.  


Como analisar as zonas de atuação reveladas pelo mapeamento do terreno de mudanças?

Como é possível observar na figura seguinte, quando os actantes identificados são posicionados nesta grade bidimensional de Energia e Tempo, o mapa revela a verdadeira topografia do terreno transformacional, expondo diferentes zonas que exigem posturas estratégicas distintas. O quadrante de altíssima energia e altíssimo tempo revela a Zona Contrafactual. Estes são actantes que, para o horizonte de planejamento atual, são funcionalmente imutáveis. Alguns típicos exemplos de actantes nessa zona incluem regulações de mercado mandatórias ou sistemas de TI legados profundamente entrincheirados e de risco sistêmico. Alguns padrões narrativos, que estão fortemente enraizados na cultura da empresa, podem também ser posicionados nessa zona. A ação contextual correta para esta zona não é a intervenção direta para mudança, o que representaria um desperdício de energia, mas sim o monitoramento e a navegação ao redor dessas restrições, tratando as como fatos do ambiente.

No extremo oposto, o quadrante de baixa energia e baixo tempo expõe a Zona Volátil. Estes são actantes excessivamente fáceis de mudar. Embora exista a tendência de celebrá-los como “vitórias fáceis”, a volatilidade excessiva em elementos críticos pode ser perigosa. Se tomarmos um contexto financeiro como exemplo, é possível ver actantes voláteis como as flutuações diárias das taxas de câmbio ou dos  índices das bolsas de valores que mudam constantemente (baixo tempo), mas a mesa de tesouraria da instituição já possui processos e autonomia para reagir a elas em tempo real como parte de sua operação normal (baixa energia). Outro exemplo são as ações promocionais táticas e de curta duração de concorrentes. Esse tipo de situação acontece rapidamente (baixo tempo) e pode ser respondido por uma contraoferta tática de um gerente de produto, sem exigir uma reavaliação estratégica da alta diretoria (baixa energia). Da mesma forma, boatos ou ruídos de mercado e ciclos de notícias de curto prazo nas redes sociais, que podem causar picos momentâneos no volume do contact center. Esses tipos de situações atuam como características voláteis pois são eventos rápidos e a resposta é absorvida pela capacidade operacional existente, não exigindo uma vasta mobilização organizacional.

A zona liminar é uma outra área de enorme relevância estratégica que o mapeamento também tipicamente revela.  O conceito de “Liminar”, no Estuarine Map, refere se a momentos de transições entre zonas. Estes são actantes posicionados perto da zona contrafactual, com alto custo de energia e tempo, mas que, diferentemente dos contrafactuais, não são impossíveis de mudar. A sua viabilidade é condicional. Um exemplo organizacional clássico é o “processo de orçamento anual”, um actante que notoriamente influencia times que operam em ciclos curtos de entrega e revisão. Na perspectiva de uma equipe, este actante parece contrafactual, pois ela não possui energia política para alterá-lo. O mapa, no entanto, o identifica como liminar, revelando que a ação contextual correta é o trabalho de influência direcionado para engajar um patrocinador específico, como o CFO, que detém o capital político necessário para “pagar” o custo de energia e mover o actante.

O mapa ainda permite a identificação da zona de energia negativa. Essa área revela actantes que não apenas exigem baixa energia para mudar, mas que estão ativamente mudando por conta própria, sem qualquer intervenção ou gasto de energia intencional por parte da liderança. O “custo” negativo significa que seria necessário gastar energia para impedir a mudança e não para iniciá-la. Esta zona identifica padrões emergentes, comportamentos inexplicáveis ou fatos consumados que já ganharam tração autônoma dentro do sistema. O reconhecimento desta zona é vital para otimizar os recursos organizacionais, pois permite à gestão decidir se deve amplificar e formalizar esse movimento emergente (reduzindo o desperdício de tentar “reinventar a roda”) ou se deve gastar energia ativamente para mitigá-lo, caso seja um comportamento indesejado.

A zona de energia negativa, quando impulsionada por fatores externos, frequentemente se manifesta como tendências de mercado ou ecossistema que ganham tração própria, impactando a organização independentemente de sua estratégia interna. Um exemplo claro é a adoção viral de um novo padrão tecnológico pelo ecossistema de parceiros e fornecedores. Nesse caso, a mudança (a migração para o novo padrão) está ocorrendo por conta própria e a organização teria que gastar energia ativamente para resistir a ela, mantendo sistemas legados incompatíveis. Outro exemplo é a rápida disseminação de uma nova expectativa de consumo ou demanda social (como uma exigência por transparência radical em ESG), impulsionada por mídias sociais ou crises reputacionais de concorrentes. Nesse exemplo, a mudança na percepção do cliente já está em curso e a energia negativa é gasta ao tentar ignorar ou conter essa nova demanda, em vez de se adaptar a ela. Da mesma forma, novas regulações mandatórias (como a LGPD ou o GDPR) funcionam como mudanças de energia negativa pois o movimento em direção à conformidade se torna um fato consumado no setor e a energia organizacional é gasta para não estar em conformidade ou lutar contra a mudança e, não para iniciá-la.


Como o Estuarine Mapping auxilia o desenvolvimento de estratégias?

O Estuarine Mapping facilita a co-criação de estratégias ao mover as lideranças de um consenso abstrato (onde todos concordam com termos vagos como “inovação” ou “foco no cliente”) para uma negociação concreta sobre elementos tangíveis da organização. O processo guia os líderes a identificar coletivamente os “actantes” (processos, políticas, sistemas, normas culturais) que precisam mudar. A verdadeira co-criação ocorre quando o grupo debate e posiciona ativamente cada actante nos eixos de Energia e Tempo. O benefício crucial deste alinhamento de entendimento é que ele expõe e estimula a negociação de suposições ocultas. Um líder pode, por exemplo, enxergar o actante “mudar o sistema de bônus anual” como Contrafactual (impossível), enquanto outro o vê como Liminar (possível, mas exigindo alto capital político do CEO). O mapa força essa conversa, garantindo que o grupo alinhe suas percepções sobre o que é realisticamente viável. Ao final, a estratégia co-criada não é uma lista de desejos, mas um portfólio de intervenções que todos os líderes concordam ser energeticamente possível de executar, gerando um comprometimento robusto e compartilhado com a realidade da ação.


Como o Estuarine Mapping tem beneficiado organizações?

A adoção do Estuarine Mapping por organizações ao redor do mundo tem catalisado uma mudança fundamental na forma como a estratégia e a transformação são concebidas e executadas.  Empresas que aplicam esta técnica têm conseguido desmantelar os silos entre estratégia e execução. O mapa torna-se uma ferramenta de co-criação de estratégias que funde a visão de longo prazo com a granularidade tática, expondo onde as verdadeiras barreiras à mudança residem. Isso permite que a liderança pare de financiar grandes programas “big bang”, que consomem toda a energia organizacional, e passe a gerenciar um portfólio contínuo de microintervenções e experimentos seguros. A clareza obtida ao identificar zonas voláteis, liminares e contrafactuais permite uma alocação de recursos mais contextualizada: estabilizando o que é volátil, aplicando influência política direcionada para desbloquear o que é liminar e monitorando o que é imutável. Talvez a mensagem final mais relevante desse texto seja o reconhecimento de que o benefício transformacional do Estuarine Mapping é sua capacidade de otimizar a energia organizacional, permitindo que a mudança emerja de forma orgânica e sustentável, alinhada com a dinâmica social do sistema, em vez de ser imposta de forma traumática e ineficaz.

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É Chief Scientific Officer na The Cynefin Co. Brazil e possui uma trajetória de pioneirismo com agilidade e complexidade. Teve trabalhos de grande destaque envolvendo a disciplina Agile Coaching, como a publicação do livro The Agile Coaching DNA, e introduzindo o conceito de plasticidade organizacional para comunidades e organizações. Na Austrália, esteve envolvido em iniciativas de transformação nas áreas financeira e de segurança civil, onde utilizou complexidade aplicada como base do seu trabalho. Mais recentemente foi Diretor de Business Agility para Americas da consultoria alemã GFT.

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