Continuando o artigo anterior intitulado Transformando complexidade em terreno navegável com o framework AIMS, esse texto adicionará uma camada de aprofundamento sobre como dar sentido ao emaranhado de elementos visíveis e invisíveis que moldam a cultura de uma organização. Essa é uma das tarefas mais desafiadoras para líderes, consultores e agentes de mudanças.
Em ambientes organizacionais, pessoas, estruturas, processos, narrativas, tecnologias, símbolos e regras formais se entrelaçam de maneira não linear, criando uma teia densa e frequentemente opaca de relações. Nesse tipo de ambiente, a causalidade é difusa, as conexões são instáveis e os efeitos das ações podem se manifestar de forma tardia, inesperada ou oblíqua. Em vez de fluxos previsíveis e sequenciais, o que se encontra são circuitos de retroalimentação, zonas de ambiguidade e interações subterrâneas que escapam a modelos convencionais de análise. O método Actant Mapping, desenvolvido por Dave Snowden como parte do ecossistema Cynefin, tem se mostrado uma valiosa abordagem prática para ler as dinâmicas que afetam os mais diferentes tipos de desafios nas empresas.
Mapeando os elementos atuantes em um contexto organizacional
O termo contexto deriva do latim contextus, que significa “tecido junto”, remetendo à ideia de um entrelaçamento de elementos que, combinados, dão forma ao sentido de uma situação. Na linguística, o contexto passou a ser reconhecido como aquilo que circunscreve e dá significado ao discurso. Dessa forma, ajuda a perceber o conjunto de condições históricas, culturais e relacionais que permitem compreender uma mensagem além do literal. Na antropologia e sociologia, o conceito se consolidou como chave para a interpretação de práticas sociais, costumes e instituições, enfatizando que todo comportamento humano se ancora em estruturas coletivas mais amplas.
O método de Actant Mapping oferece uma lente eficiente para a leitura de contextos organizacionais. Ao distinguir entre Actors (atores humanos dotados de intenção e agência), Constraints (restrições que limitam ou orientam o comportamento) e Constructors (construtores que moldam ou produzem padrões emergentes de transformação), o modelo permite que líderes compreendam não apenas “quem faz o quê”, mas, sobretudo, como as forças humanas, estruturais e simbólicas se entrelaçam para moldar o ecossistema organizacional. Esse refinamento metodológico evita simplificações reducionistas como tratar a organização apenas como um conjunto de indivíduos ou unicamente como uma estrutura normativa. Olhar um contexto pelas lentes de actants ajuda a revelar uma rede viva de interdependências, influências e potenciais pontos de alavanca.
É importante ressaltar que o valor dessa abordagem conecta-se diretamente ao processo de sense-making coletivo. Ao compartilhar a identificação de actants entre diferentes níveis e áreas da organização, cria-se um espaço de diálogo onde múltiplas perspectivas se encontram e, onde a realidade organizacional deixa de ser narrada apenas pelos indicadores quantitativos ou pela visão de uma cúpula restrita.
Assim, o Actant Mapping funciona como uma ferramenta de tradução entre a complexidade das percepções e a necessidade prática de agir. Ele oferece à liderança e às equipes não um mapa rígido, mas uma bússola interpretativa, que ajuda a orientar decisões e experimentos.
Exemplo de aplicação em um contexto bancário
Uma instituição bancária vivia uma situação paradoxal pois possuía recursos financeiros abundantes, equipes altamente qualificadas e tecnologias avançadas, mas esbarrava em grandes dificuldades para avançar de maneira concreta a jornada de transformação digital. O lançamento de novos produtos, especialmente os voltados ao público digital, tornava-se lento e oneroso, gerando frustração tanto no mercado quanto nas equipes internas. A liderança percebia que os obstáculos não eram apenas técnicos ou processuais, mas profundamente relacionais pois havia falta de colaboração efetiva entre áreas, redundância de funções, desalinhamento de prioridades e narrativas culturais que reforçavam a aversão ao risco.
Nesse cenário, o Actant Mapping foi utilizado como uma ferramenta de leitura sistêmica capaz de revelar as dinâmicas ocultas que moldavam o comportamento organizacional e, portanto, de indicar pontos de intervenção mais coerentes. Essa leitura foi feita através de uma combinação de coletas individuais e workshops coletivos com diferentes times. Seguem alguns dos exemplos de atores, restrições e construtores identificados nesse contexto.
Actors – As tensões de agência e intenção
Atores (actors) são os actantes mais visíveis, mas muitas vezes mal interpretados. No exemplo do banco em questão, foi possível observar que os atores não se resumiam apenas a indivíduos em cargos formais. Atores também eram grupos, clientes, concorrentes e até dispositivos técnicos que possuíam agência prática sobre o funcionamento da organização. Segue alguns dos atores identificados no contexto do banco:
Atores internos formais
- Executivos seniores (C-level)
- Gestores médios
- Equipes de TI (Tecnologia da Informação)
- Área de compliance e jurídico
- Áreas de negócios e produtos
- Área de RH (Recursos Humanos)
Atores internos informais
- Funcionários de longa data (cuja reputação interna garante autoridade não oficial na definição de “como as coisas são feitas”).
- Grupos de afinidade e comunidades internas
- Mentores informais
Atores externos
- Órgãos reguladores (Banco Central, CVM, autoridades internacionais)
- Auditores externos e consultorias
- Sindicatos de classe bancária
- Clientes corporativos estratégicos
- Clientes digitais emergentes
- Fintechs concorrentes
- Big techs parceiras
- Mídia e opinião pública
- Órgãos de defesa do consumidor
- Investidores e acionistas
Esse recorte de atores acima mostrou que o ecossistema dessa empresa era um campo de agência distribuída, no qual atores interagiam continuamente, muitas vezes em direções contraditórias. Compreender esse tecido de intenções foi fundamental para a evolução do processo de transformação do banco.
Constraints – As fronteiras das possibilidades
Foi mapeado com mais granularidade as constraints(restrições) que delimitavam e condicionavam a ação organizacional. Essas restrições não eram homogêneas pois algumas derivavam de exigências externas inegociáveis, enquanto outras emergiam das escolhas e arranjos internos cristalizados ao longo do tempo. Cabe salientar que constraints não necessariamente representam coisas boas ou ruins dentro de um sistema. Na prática, elas são balizadores vitais para as decisões no dia a dia dos atores atuantes em uma organização. Segue algumas das constraints identificadas nesse banco:
Restrições regulatórias (robustas e externas)
- Compliance regulatório e exigências do Banco Central
- Normas de prevenção à lavagem de dinheiro
- Regras de proteção ao consumidor
- Regulamentação de privacidade de dados (LGPD)
Restrições estruturais internas (resilientes e modificáveis)
- Sistemas legados de TI (plataformas de core banking antigas)
- Processos orçamentários anuais
- Hierarquias de decisão com múltiplas camadas de aprovação
- Políticas de governança de TI centralizadas
Restrições tecnológicas e de ecossistema
- Dependência de fornecedores estratégicos
- Interoperabilidade regulada pelo Open Banking
- Políticas de cibersegurança
Esses elementos mostraram que as restrições não eram meros obstáculos no contexto desse banco, mas condicionadores ativos do comportamento organizacional. Algumas funcionaram como barreiras intransponíveis (robustas), necessárias para garantir estabilidade sistêmica e confiança do mercado. Outras, no entanto, eram maleáveis (resilientes), frutos de práticas herdadas, interpretações excessivamente conservadoras ou arranjos burocráticos que podiam ser redesenhados. O desafio da transformação organizacional estava justamente em distinguir entre essas camadas, reconhecendo quais constraints sustentavam a legitimidade do banco e quais podiam ser moduladas para liberar espaço de inovação e colaboração.
Constructors – Os catalisadores simbólicos da cultura
Os construtores (constructors) são talvez a camada mais sutil e, ao mesmo tempo, mais poderosa do Actant Mapping, pois dizem respeito a elementos simbólicos, narrativos, rituais e estruturais que sustentam a cultura organizacional e moldam, muitas vezes de maneira invisível, o que é considerado legítimo ou ilegítimo dentro do sistema. No contexto do banco em questão, foi possível identificar diversos construtores que influenciavam profundamente suas dinâmicas. Seguem exemplos de construtores deste contexto:
Narrativas e linguagem
- O mito da solidez inabalável (histórias repetidas ao longo de décadas sobre como o banco resistiu a crises econômicas passadas)
- O “orgulho da marca tradicional” (atuam como símbolos de continuidade e estabilidade)
- Uso de jargões técnicos e regulatórios (expressões como “mitigação de risco”, “compliance total” e “zero falhas” criam um vocabulário que privilegia segurança e previsibilidade)
- Histórias internas sobre fracassos (episódios passados de falhas em projetos digitais são frequentemente relembrados como alertas)
- Narrativas sobre grandes sacrifícios pessoais para pavimentar o crescimento profissional na empresa
Rituais organizacionais
- Rituais de reporte e revisão trimestral
- Premiações internas e programas de reconhecimento
- Cerimônias de integração de trainees e executivos
Estruturas simbólicas e artefatos
- Laboratórios de inovação isolados
- Canais de atendimento (majoritariamente presenciais)
- Sistema para apontamento de horas
- Sistemas de indicadores e dashboards corporativos
- Ambientes físicos de diretoria (andares exclusivos, com acesso restrito)
Esses construtores mostraram que a transformação do banco não dependia apenas de mexer em processos ou estruturas formais, mas de reconfigurar narrativas, símbolos e rituais que davam sentido à vida organizacional. Ignorar esses elementos foi semelhante a tentar plantar uma semente em um solo que a rejeita. Por outro lado, reconhecer os construtores permitiu ativar alavancas de mudança cultural mais eficazes, por exemplo, reinterpretar a prudência histórica como “capacidade de inovar com responsabilidade”, ou transformar o ritual trimestral em espaço para valorizar tanto a solidez financeira quanto a agilidade digital.
Visualizando o mapa de Actants
Uma das formas mais eficazes de materializar a leitura de um contexto organizacional é por meio do mapeamento visual de uma tríade de actantes diretamente relacionados a um desafio específico que precisa ser navegado. Nessa abordagem, atores, construtores e restrições tornam-se os três vértices de um triângulo que circunscreve o problema em questão, permitindo uma visão mais integrada de suas dinâmicas.
É fundamental reconhecer, contudo, que os actantes raramente se apresentam em categorias puras. Na prática, há uma ampla gama de relações ambíguas e sobreposições entre eles. Um mesmo elemento pode, em determinados contextos, atuar simultaneamente como ator e como restrição, ou ainda, uma restrição pode assumir características de construtor. Essa fluidez não é uma falha do modelo, mas sim uma expressão da complexidade das organizações.
O uso da estrutura triangular, portanto, não busca cristalizar elementos fixos, mas sim evidenciar as proporções e interações entre os actantes, revelando áreas de sobreposição e possíveis tensões ocultas. É justamente nessa interseção que emergem insights valiosos sobre o funcionamento do sistema e sobre os pontos de alavancagem para intervenções mais contextualizadas.
A imagem abaixo ilustra um exemplo típico de mapeamento utilizando essa tríade de actantes, mostrando como diferentes elementos podem ocupar posições híbridas e gerar novas leituras sobre o desafio em análise.

E no fim das contas, o que podemos fazer com esse mapa de Actants?
Antes de finalizar esse texto é importante relembrar que contextos organizacionais são os “tecidos invisíveis” compostos por atores, restrições e construtores, conferindo coerência ou resistência às mudanças. Reconhecê-los não é apenas um exercício intelectual, mas uma condição estratégica para liderar transformações em ambientes complexos, onde a linearidade das análises tradicionais já não é suficiente.
Combinado com a lógica de gestão de mudanças do AIMS Framework, o mapeamento de actants constitui um passo essencial para o desenho de intervenções organizacionais verdadeiramente contextualizadas. Seu principal benefício está em oferecer uma leitura mais densa e realista do ambiente no qual a organização está inserida, permitindo que as ações não sejam meramente transplantadas de modelos genéricos, mas sim moldadas às disposições, propensões e tensões próprias daquele sistema.
Outro importante benefício desse mapeamento é que ele enriquece a capacidade de sense-making coletivo, permitindo que líderes e equipes vejam além dos sintomas imediatos e reconheçam as dinâmicas profundas que estruturam seus desafios. Intervenções desenhadas a partir dessa leitura tendem a ser mais coerentes, legítimas e sustentáveis, pois dialogam diretamente com a realidade vivida pelos atores, respeitando as restrições inegociáveis, modulando as resilientes e reconfigurando construtores para evoluir a organização.
A vivência prática tem evidenciado que mapear actants é uma abordagem estratégica que possibilita navegar a complexidade organizacional com maior lucidez, evitando soluções superficiais e criando condições mais férteis para a transformação.