Sociedade

Comorbidade moral e ética

Após muitas décadas, continuamos a ser o País de Macunaímas e Gersons: temos uma elite que grita contra a corrupção e a favor do Estado mínimo, mas que procura, todos os dias, levar vantagem em tudo
Fundadora da #JustaCausa, do programa #lídercomneivia e dos movimentos #ondeestãoasmulheres e #aquiestãoasmulheres

Compartilhar:

Onde começa a corrupção? Em nós. Já escrevi em outros artigos que integridade se aprende em casa e que a mentira nossa de cada dia é uma realidade.

Como podemos exigir comportamentos que não praticamos? Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, criado por Mário de Andrade em seu livro de 1928, segue firme e forte no nosso inconsciente coletivo.

Assim como Gerson, o personagem encarnado pelo ídolo da Copa de 1970, na campanha do cigarro Vila Rica: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”.

Infelizmente, muita gente da nossa elite, bem como diversos dirigentes públicos e privados da nação, ainda orienta sua conduta pelo princípio de obter vantagens de forma indiscriminada, sem se importar com questões éticas ou morais, a famosa “lei de Gerson”.

Embora tenha mostrado nosso caráter solidário, a pandemia também escancarou traços da nossa comorbidade moral e ética: em junho de 2020, por exemplo, 3,9 milhões de brasileiros e brasileiras de alta renda, solicitaram e receberam o auxílio emergencial, segundo dados do Instituto Locomotiva.

Um terço da nossa elite acha que tem esse direito porque considera que o dinheiro público não é de ninguém. Culpa? Crise de consciência? Nenhuma. Essas pessoas não veem nada de errado nesse comportamento, tanto é assim que muitos comemoraram o acesso ao benefício pelas redes sociais, divulgando churrascos regados a cerveja, financiados pelo auxílio emergencial. Tiraram o recurso de quem realmente precisava, mas dizem que são a favor do Estado mínimo e contra a corrupção. Sério?

## O clássico fura-fila

Agora, em 2021, com a chegada, a conta-gotas das vacinas no Brasil, e o estabelecimento de uma lista de comorbidades – condições ou doenças pré-existentes, que possibilitam o acesso prioritário à imunização contra a Covid –, pessoas sem qualquer comorbidade estão tentando furar a fila nos quatro cantos do país.

Laudos médicos falsos passaram a ser vendidos nos centros das grandes capitais e nas redes sociais, por preços que variam entre R$ 20 e R$ 250. A emissão de atestados falsos para pessoas saudáveis é alvo de investigações em vários estados brasileiros.

Vale lembrar que, para ter direito à vacina por comorbidade, a pessoa deve estar cadastrada no SUS ou apresentar um exame, receita ou laudo médico. A lista deixa claro que a prioridade é para os casos mais graves de cada doença.

Nessa onda de “neo-comórbidos”, há vários tipos de oportunistas: jovens que alegam ter pressão alta e diabetes, homens que se cadastram como grávidas, e gente se vangloriando sem o menor pudor, em mensagens de WhatsApp, por ter furado a fila e recebido a vacina, mesmo não tendo nenhuma comorbidade.

Em suma, gente que não vê problema algum porque “é obrigação do estado, do poder público, fornecer a vacina”. Gente que não sente nenhum tipo de constrangimento em ser vacinada com uma declaração de doença inexistente.

Num País que ainda não tem vacina para todo mundo, quando uma pessoa fura a fila com um laudo falso, ela está roubando a vacina de outra pessoa que está muito mais vulnerável. E ninguém parece se importar.

Lima Barreto (1881-1922) já dizia que o “Brasil não tem povo, tem público”. Um século depois, seguimos demonstrando a mesma apatia em relação à nossa própria história e indiferentes, cada um de nós, com o destino de todos.

Sou uma otimista incorrigível e mantenho a esperança de que sairemos dessa pandemia com a consciência coletiva necessária para mudar esse misto de anestesia e a alienação que parece estar entranhada em nós. Só assim conseguiremos transformar essa letargia em ação.

No entanto, sempre que me deparo com os Macunaímas e os Gersons de plantão, do Oiapoque ao Chuí, sinto minha esperança escorrendo pelas mãos.

*Gostou do artigo da Neivia Justa? Saiba mais sobre questões que envolvem a cultura e a sociedade brasileira assinando gratuitamente [nossas newsletters](https://www.revistahsm.com.br/newsletter) e ouça [nossos podcasts](https://www.revistahsm.com.br/podcasts) em sua plataforma de streaming favorita.*

Compartilhar:

Artigos relacionados

Quando o colaborador é o problema

Ambientes tóxicos nem sempre vêm da cultura – às vezes, vêm de uma única pessoa. Entenda como identificar e conter comportamentos silenciosos que desestabilizam equipes e ameaçam a saúde organizacional.

Cultura organizacional, ESG, Gestão de pessoas, Liderança, Marketing
5 de agosto de 2025
No mundo corporativo, reputação se constrói com narrativas, mas se sustenta com integridade real - e é justamente aí que muitas empresas tropeçam. É o momento de encarar os dilemas éticos que atravessam culturas organizacionais, revelando os riscos de valores líquidos e o custo invisível da incoerência entre discurso e prática.

Cristiano Zanetta

6 minutos min de leitura
Inteligência artificial e gestão, Estratégia e Execução, Transformação Digital, Gestão de pessoas
29 de julho de 2025
Adotar IA deixou de ser uma aposta e se tornou urgência competitiva - mas transformar intenção em prática exige bem mais do que ambição.

Vitor Maciel

3 minutos min de leitura
Carreira, Aprendizado, Desenvolvimento pessoal, Lifelong learning, Pessoas, Sociedade
27 de julho de 2025
"Tudo parecia perfeito… até que deixou de ser."

Lilian Cruz

5 minutos min de leitura
Inteligência Artificial, Gestão de pessoas, Tecnologia e inovação
28 de julho de 2025
A ascensão dos conselheiros de IA levanta uma pergunta incômoda: quem de fato está tomando as decisões?

Marcelo Murilo

8 minutos min de leitura
Liderança, Cultura organizacional, Liderança
25 de julho de 2025
Está na hora de entender como o papel de CEO deixou de ser sinônimo de comando isolado para se tornar o epicentro de uma liderança adaptativa, colaborativa e guiada por propósito. A era do “chefão” dá lugar ao maestro estratégico que rege talentos diversos em um cenário de mudanças constantes.

Bruno Padredi

2 minutos min de leitura
Desenvolvimento pessoal, Carreira, Carreira, Desenvolvimento pessoal
23 de julho de 2025
Liderar hoje exige muito mais do que seguir um currículo pré-formatado. O que faz sentido para um executivo pode não ressoar em nada para outro. A forma como aprendemos precisa acompanhar a velocidade das mudanças, os contextos individuais e a maturidade de cada trajetória profissional. Chegou a hora de parar de esperar por soluções genéricas - e começar a desenhar, com propósito, o que realmente nos prepara para liderar.

Rubens Pimentel

4 minutos min de leitura
Pessoas, Cultura organizacional, Gestão de pessoas, Liderança, times e cultura, Liderança, Gestão de Pessoas
23 de julho de 2025
Entre idades, estilos e velocidades, o que parece distância pode virar aprendizado. Quando escuta substitui julgamento e curiosidade toma o lugar da resistência, as gerações não competem - colaboram. É nessa troca sincera que nasce o que importa: respeito, inovação e crescimento mútuo.

Ricardo Pessoa

5 minutos min de leitura
Liderança, Marketing e vendas
22 de julho de 2025
Em um mercado saturado de soluções, o que diferencia é a história que você conta - e vive. Quando marcas e líderes investem em narrativas genuínas, construídas com propósito e coerência, não só geram valor: criam conexões reais. E nesse jogo, reputação vale mais que visibilidade.

Anna Luísa Beserra

5 minutos min de leitura
Tecnologia e inovação
15 de julho 2025
Em tempos de aceleração digital e inteligência artificial, este artigo propõe a literacia histórica como chave estratégica para líderes e organizações: compreender o passado torna-se essencial para interpretar o presente e construir futuros com profundidade, propósito e memória.

Anna Flávia Ribeiro

17 min de leitura
Inovação
15 de julho de 2025
Olhar para um MBA como perda de tempo é um ponto cego que tem gerado bastante eco ultimamente. Precisamos entender que, num mundo complexo, cada estudo constrói nossas perspectivas para os desafios cotidianos.

Frederike Mette e Paulo Robilloti

6 min de leitura