Construir a cultura de uma empresa dá trabalho. Leva tempo. Não é tarefa fácil. E se torna ainda mais complexa quando entendemos que essa cultura não é construída apenas pela alta liderança. Ela é moldada todos os dias, por todas as pessoas que fazem parte da organização, em todos os níveis e lugares – com suas particularidades locais, regionais e culturais.
Trabalho com compliance há mais de 25 anos, seja atuando dentro das empresas como executiva, seja hoje, como consultora. E posso afirmar: o assédio, em todas as suas formas, continua presente no ambiente corporativo – e ainda exige ações constantes. O número de casos reportados aumenta. E a judicialização do tema cresce na mesma proporção.
Entre 2020 e 2024, a Justiça do Trabalho recebeu 33.050 novos casos envolvendo pedidos de indenização por dano moral decorrente de assédio sexual no trabalho. Somente entre 2023 e 2024, o volume de novas ações cresceu 35%, passando de 6.367 para 8.612.
Por um lado, esse cenário me entristece. Por outro, enxergo aí uma nova chance. Uma chance de transformar esse tema – muitas vezes técnico e distante – em algo próximo, humano, compreensível. Um convite à consciência sobre o estrago que comportamentos disfuncionais causam no ambiente de trabalho, nas relações e na saúde mental e emocional de todos os envolvidos.
Assédio é sintoma. Cultura é causa.
Assédio não é exceção. Em muitas empresas, ele está enraizado na cultura – camuflado como “pressão por resultados”, “perfil agressivo” ou “jeito difícil, mas competente”.
Não é exagero dizer que quase todo profissional já sofreu algum tipo de assédio ao longo da vida. Seja um comentário inadequado, um constrangimento público, uma insinuação fora de hora, uma exclusão proposital, o querer prejudicar o outro de maneira estratégica e velada. E isso deixa marcas.
Assédio moral é a exposição de uma pessoa a situações humilhantes e constrangedoras de forma repetitiva e prolongada, no exercício do trabalho. Não se confunde com o dano moral, que pode ocorrer por um único episódio, ainda que grave.
Assédio sexual, por sua vez, é crime, previsto no artigo 216-A do Código Penal Brasileiro. E importante: o gênero da vítima não é determinante para a configuração do crime. Ainda assim, sabemos que ele ocorre preponderantemente contra mulheres, como mostram os dados estatísticos.
Por que o problema continua – mesmo com mais informação
Hoje, falamos mais sobre assédio. Mas falar não é o suficiente. Muitos programas internos continuam sendo meramente formais. Treinamentos obrigatórios, canais de denúncia burocráticos, políticas guardadas na intranet.
Enquanto isso, a realidade muda. O modelo híbrido expandiu as formas de assédio – agora por mensagens, chamadas de vídeo, aplicativos corporativos. E a falta de supervisão direta aumentou o silêncio das vítimas.
Segundo pesquisa nacional do Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva, 76% das mulheres entrevistadas disseram já ter sofrido assédio ou violência no ambiente de trabalho. Ainda mais alarmante: em 36% dos casos, nada foi feito contra o agressor, e em 39% as vítimas nem sequer foram informadas sobre qualquer medida adotada.
Outro levantamento, realizado pela Think Eva em parceria com o LinkedIn, apontou que 78% das mulheres têm medo de denunciar por acreditarem que a empresa não tomará providência. O dado mais crítico: apenas 5% recorreram ao RH, e muitas preferiram pedir demissão.
Fato é que em muitas empresas, que inclusive tem uma área dedicada ao Compliance, que centraliza os temas relacionados é desacreditada pelos colaboradores, tanto por não passar credibilidade e/ou confiança não tomar ações/decisões adequadas.
Departamento Jurídico e RH não podem ser neutros. Precisam ser agentes de transformação.
Assédio é violência organizacional. E neutralidade, nesse contexto, perpetua o problema.
O papel do RH e do Departamento Jurídico é ser guardião da cultura organizacional. Isso exige mais do que normativas. Exige posicionamento claro, escuta ativa, coragem institucional e demandar compromisso da alta liderança.
Quatro caminhos para começar a virar esse jogo
- Tornar a política contra o assédio parte do cotidiano, não apenas do onboarding: Comunicar com clareza, reforçar com frequência, revisar sempre que necessário. As pessoas precisam saber o que é assédio – e o que não será tolerado.
- Formar líderes éticos e empáticos: Liderança é influência, é formar opinião – e pode ser usada para proteger ou para violentar. A maior parte dos casos de assédio envolve lideranças despreparadas, que confundem autoridade com autoritarismo.
- Criar canais de escuta confiáveis, seguros e humanos: Uma denúncia mal acolhida pode destruir não apenas uma carreira, mas a confiança em toda a organização.
- Medir e monitorar o clima de forma ativa: Absenteísmo, rotatividade alta, reclamações indiretas – tudo isso são sintomas que devem ser analisados com atenção e sensibilidade.
O que está em jogo é mais do que reputação: é a dignidade das pessoas
Pensemos juntos: por que transformar o ambiente de trabalho em um lugar hostil, inseguro, excludente? Se passamos boa parte da vida trabalhando, por que não fazer disso um espaço de crescimento, acolhimento e pertencimento?
Ambientes saudáveis geram bons resultados. Isso não é discurso: é realidade. As gerações mais jovens já demonstram que não buscam apenas bons salários, mas sim ambientes respeitosos, justos e humanos.
Não cabe mais fingir que o problema está restrito a algumas pessoas ou a “casos isolados”. O assédio é um reflexo direto da cultura organizacional. Cabe a nós – líderes, RHs, executivos e consultores – assumir a responsabilidade por mudar esse cenário. Respeito não pode ser negociável. E não basta reagir. É hora de agir com consciência, ética e consistência.