Vivemos em uma era em que marcas constroem reputações com base em narrativas cuidadosamente planejadas – mas nem sempre sustentadas por práticas compatíveis. A ética, embora frequentemente apresentada como um valor inegociável, tem se mostrado, na prática, moldável às circunstâncias: volátil, adaptável e, justamente por isso, vulnerável.
Nesse cenário, o discurso corporativo sobre integridade ganha visibilidade: códigos de conduta são criados, programas de compliance implementados e declarações sobre valores éticos ocupam lugar de destaque em conferências e relatórios anuais. Contudo, quando esses compromissos não se traduzem em comportamentos concretos e consistentes, instala-se um descompasso entre o que se diz e o que se faz.
Esse desalinhamento fragiliza a confiança nas organizações e abre espaço para uma crise silenciosa – e profundamente corrosiva – de integridade. Afinal, a reputação pode até ser construída por boas narrativas, mas é sustentada, de fato, pela coerência entre discurso e prática.
A forma como as lideranças enfrentam dilemas éticos, por exemplo, é o principal termômetro da solidez cultural de uma organização. Uma pesquisa divulgada em maio de 2024, conduzida pelo Talenses Group em parceria com o Insper e a consultoria Think Eva, revelou que a decisão de encaminhar denúncias de assédio sexual ao setor responsável ainda depende da percepção de gravidade por parte dos gestores.
O estudo, que ouviu 283 líderes de diferentes setores, evidencia um padrão preocupante: a atuação ética das lideranças varia conforme a leitura subjetiva do caso e o ambiente cultural da empresa.
Ou seja, quando a ética não é um princípio enraizado, ela se torna instável e, com frequência, relativizada.
A fragilidade da ética de fachada
Quando não é vivida no cotidiano, mas apenas exibida como peça de comunicação, essa ética facilmente se dobra à conveniência. Torna-se um artefato de marketing: visualmente atraente, mas vazio de substância. Esse fenômeno conecta-se diretamente ao conceito de modernidade líquida, cunhado por Zygmunt Bauman, que descreve uma sociedade em que valores, relações e estruturas se tornam instáveis e maleáveis.
No ambiente corporativo, essa liquidez ética se traduz em códigos de conduta decorativos, discursos performáticos e respostas evasivas diante de dilemas reais.
Essa ética falha quando lideranças optam pelo silêncio diante de questões morais. Falha quando metas agressivas atropelam o respeito às pessoas. E falha, sobretudo, quando uma crise escancara incoerências e a reação da organização é negar, ocultar ou maquiar os fatos – em vez de reconhecê-los com responsabilidade e coragem.
O caso Smart Fit e a ausência de empatia
Na era da hiperconexão, a reputação de uma empresa depende menos do que ela afirma ser – e mais do que o público percebe. O caso envolvendo a Smart Fit, em junho de 2025, escancarou os riscos de uma integridade que não se manifesta com clareza nos momentos críticos.
A morte de Reina Sabas, de 39 anos, durante um exercício em uma unidade na Cidade do México, causou comoção não apenas pela tragédia em si, mas pela maneira como a empresa respondeu ao ocorrido. Imagens divulgadas mostram profissionais tentando remover o corpo da vítima – em vez de preservar o local para a perícia.
Mesmo com a investigação ainda em andamento, a narrativa pública se consolidou rapidamente: a de uma empresa mais preocupada com a própria imagem do que com seus princípios. A ruptura entre expectativa e conduta escancarou a fragilidade de uma reputação baseada apenas no discurso.
Os bastidores do Hospital das Clínicas de Teresópolis (RJ)
Imagens de um encontro íntimo entre servidores do Hospital das Clínicas de Teresópolis (RJ), registradas durante um plantão noturno, vieram a público e causaram ampla indignação. O episódio, que rapidamente ganhou repercussão nas redes sociais e recebeu apelidos polêmicos, escancarou uma preocupante desconexão entre a missão institucional do hospital e a conduta de parte de sua equipe durante o expediente.
Em contextos de alta vulnerabilidade social, qualquer desvio ético – ainda que pontual – compromete não só a imagem externa da instituição, mas corrói a confiança interna, abala o comprometimento das equipes e enfraquece o senso de propósito coletivo. A integridade, nesse cenário, deixa de ser apenas um valor simbólico e passa a ser o eixo central da legitimidade institucional.
Ética como estrutura, não ornamento
A superficialidade ética não gera apenas danos reputacionais – ela compromete o dia a dia das relações internas e corrói, silenciosamente, a cultura organizacional. A 4ª edição do estudo Perfil do Hotline no Brasil 2024, da KPMG, revela um cenário preocupante: 45% das empresas registraram um aumento de 28% nas denúncias feitas por seus canais internos.
O assédio moral lidera entre os casos com indícios de veracidade, representando 40% das denúncias parcialmente procedentes. Além disso, 26% das ocorrências confirmaram o descumprimento total de políticas internas. Ou seja, mesmo com códigos, discursos e programas de compliance em vigor, a ética corporativa segue falhando – não por ausência de formalização, mas por falta de enraizamento prático.
É urgente que as organizações deixem de tratar a ética como um acessório, ligado à imagem, e passem a entendê-la como alicerce da cultura institucional. Ética não deve ser uma cláusula de manual – mas um projeto de engenharia cultural: contínuo, profundo e estrutural, onde os valores são cultivados, sistematizados e aplicados de forma coerente no cotidiano.
Esse compromisso exige método, constância, vigilância e, sobretudo, liderança pelo exemplo. Significa transformar códigos de conduta em ferramentas vivas, acessíveis e aplicáveis. Significa criar ambientes onde dilemas possam ser discutidos com maturidade, e onde haja espaço seguro para denúncias – com escuta, proteção e resposta efetiva.
Iniciativas bem-sucedidas já apontam caminhos possíveis. Empresas como Patagonia e Natura têm investido em comitês de integridade, canais de escuta ativa com retorno público e treinamentos baseados em dilemas reais – onde o foco está menos na punição e mais na qualidade da decisão ética.
O futuro pertence às organizações que compreendem que a ética não é um freio, mas o motor da legitimidade. Empresas que colocam a integridade no centro das escolhas constroem vínculos duradouros – com seus públicos, com a sociedade e com seu próprio propósito. Porque, no fim, ética corporativa não se resume a parecer correta. Trata-se de ser. Visivelmente. Diariamente. Incontestavelmente.