“Quando eu morrer, enterra minha cabeça pra fora do caixão – porque eu vou morrer e não vou ter visto tudo.”
Essa foi a frase que repeti, mais uma vez, depois de ouvir um dos relatos mais inacreditáveis que já chegaram até mim. Em 25 anos de carreira – entre multinacionais, consultorias e como CEO da Vittude – escuto histórias todos os dias, vindas de clientes, colegas e parceiros. Algumas inspiram. Outras chocam. Esta pertence ao segundo grupo.
A toxicidade que vem de dentro
A história envolve uma liderança recém-contratada, com menos de seis meses de casa. Bem articulada, comunicativa, vista inicialmente como promissora. Mas bastaram algumas semanas para os primeiros sinais de disfunção emergirem, sempre de forma sutil, mas calculada.
A pessoa começou a se aproximar de colaboradores de outras áreas, fazendo desabafos informais, sempre em tom de “amizade”. Criticava a empresa, insinuava problemas graves de gestão, questionava decisões estratégicas. Plantava desconfiança.
Em um episódio emblemático, reuniu seu time direto, compartilhou a tela com o site Glassdoor aberto e perguntou: “Vocês chegaram a ler os comentários sobre a empresa antes de aceitar a vaga?”.
O impacto foi imediato: ansiedade, desmotivação e insegurança psicológica se espalharam no time. Ao mesmo tempo, a pessoa dizia, nos bastidores, que havia pedido demissão e estava de saída, mas nunca formalizou qualquer solicitação.
Ao contrário: permaneceu internamente, seguia plantando informações falsas, incentivando outras pessoas a deixarem a empresa, criando rumores sobre uma suposta crise, espalhando medo.
O desfecho veio com uma queixa formal. Uma pessoa que se sentiu emocionalmente impactada decidiu não se calar. Apresentou evidências, testemunhos e registros. A empresa agiu com rapidez e responsabilidade e a liderança em questão foi desligada.
Nem toda dor é organizacional
Nos últimos anos, felizmente, falamos mais sobre saúde mental no trabalho, esgotamento e ambientes tóxicos. Mas também precisamos olhar para outro lado da moeda: há comportamentos que não nascem da cultura da empresa – nascem da conduta de indivíduos.
Nem toda queixa é legítima. Nem toda vítima é real. Nem toda liderança merece confiança. Existe, sim, colaborador tóxico. Existe quem adoece o ambiente com manipulação, desinformação e estratégias de divisão. E, muitas vezes, isso não é visível à primeira vista.
Como as empresas podem se proteger?
A toxicidade silenciosa é um risco psicossocial real. E ignorá-la pode custar a confiança, o clima e até a reputação de uma organização. Aqui vão algumas lições aprendidas com esse e outros casos:
1. Mapeie riscos psicossociais com regularidade
Não basta acreditar que “está tudo bem”. A ergonomia cognitiva, as relações de poder, a cultura de recompensa e os níveis de sobrecarga devem ser monitorados com dados. Um mapeamento bem conduzido ajuda a diferenciar um problema sistêmico de uma disfunção individual.
Neste caso, por exemplo, o diagnóstico técnico revelou que o ambiente estava saudável, sem desequilíbrios de jornada ou pressão excessiva. A toxicidade não estava na estrutura, mas no comportamento de uma pessoa. Ter esse respaldo é fundamental para proteger a empresa diante de acusações distorcidas.
2. Observe o histórico com atenção
Currículos com passagens curtas em série, lacunas mal explicadas ou ausência de referências sólidas devem acender um sinal de alerta. Mas os riscos nem sempre são visíveis à primeira vista.
Cada vez mais, empresas relatam casos de candidatos que afirmam estar empregados quando já foram desligados, mantendo o status ativo no LinkedIn e até simulando prazos de transição para “cumprir aviso prévio”. Essa estratégia costuma ser usada para evitar o estigma do ‘open to work’, se proteger de perguntas difíceis sobre o tempo curto na última empresa ou impedir uma checagem espontânea de referências.
Por isso, quando houver sinais de inconsistência, vale buscar contatos laterais, referências cruzadas ou até acionar conexões comuns no LinkedIn para entender melhor o contexto da saída. É possível investigar com ética, sem quebrar confidencialidade – e ainda assim se proteger.
3. Investigue com método e celeridade
Toda denúncia deve ser acolhida com seriedade. Mas uma denúncia bem fundamentada, acompanhada de evidências, deve disparar um processo estruturado de apuração.
Tempo é fator de proteção. Quanto mais rápido a empresa apura, mais rápido consegue interromper os danos e restabelecer a confiança do time. Investigar com método, imparcialidade e cuidado jurídico evita ruídos e protege todos os envolvidos.
4. Comunique com maturidade
Nem sempre será possível dar todos os detalhes. Mas o silêncio absoluto também gera insegurança e alimenta boatos.
A comunicação deve ser feita com transparência proporcional ao impacto, reconhecendo que houve um problema, que medidas foram tomadas e que a organização permanece comprometida com um ambiente ético e saudável. É uma forma de blindar a cultura e de sinalizar valores.
5. Crie mecanismos de escuta e monitoramento
Ambientes tóxicos não nascem da noite para o dia, mas dão sinais. Por isso, é essencial construir uma cultura de escuta contínua:
- Pesquisas de pulso frequentes;
- Avaliações 360 para lideranças;
- Canais anônimos de denúncia com retorno efetivo;
- Monitoramento de indicadores como presenteísmo, absenteísmo, rotatividade e engajamento.
Esses mecanismos funcionam como sensores: identificam ruídos antes que se tornem crises.
Cuidar é também conter
As empresas têm, sim, o dever de cuidar da saúde mental dos seus colaboradores. Mas precisam entender que cuidado não é passividade. É responsabilidade. E isso inclui agir diante de comportamentos prejudiciais ao coletivo.
Uma única pessoa, com intenção errada e liberdade para agir, pode desestruturar um time inteiro. O dano é real, emocional e muitas vezes invisível. Cuidar da cultura organizacional também é saber delimitar. Saber dizer: aqui, não. Aqui, não passa.