Conteúdo exclusivo Singularity University

O mundo mudou, nós mudamos

O funcionamento do cérebro explica por que A vida de antes da pandemia parece ficar mais no campo da recordação do que do hábito
Neurocientista, doutora em Ciências pela USP. É professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. É palestrante e consultora, e integra o corpo docente da Singularity University no Brasil.

Compartilhar:

Na semana que antecedeu à premiação do Oscar, deparei com um questionamento estranho na minha mente: como era mesmo a antiga rotina de ir ao cinema? Demorei a recordar que costumava ir às terças-feiras e que a decisão estava relacionada a momentos em que precisava espairecer e relaxar. Fiquei tentando reviver a sensação de estar na sala escura. Mesmo tendo passado os últimos dez anos frequentando salas de cinema com uma assiduidade bem expressiva, este último ano distante da telona teve um efeito devastador na minha capacidade de retomar a memória desse hábito.

Por causa desse pensamento, comecei a buscar ativamente outras experiências que caracterizavam minha vida antes da pandemia e que também estavam sendo abaladas. Festas em família, encontros com amigos, comemorações de todo tipo, viagens a trabalho e a lazer. Tudo parece estar mais no campo das recordações do que dos hábitos.

Esta é uma caraterística importante da forma como o cérebro funciona e que está diretamente ligada ao fenômeno que estou relatando aqui: a vida já não é mais do mesmo jeito não apenas porque o mundo fora de nós mudou, mas especificamente porque a percepção sobre a vida, os hábitos e os comportamentos mudou. Você já se pegou sentindo um verdadeiro estranhamento ao ver alguém na rua sem máscara? No início da pandemia o estranhamento estava em ver pessoas mascaradas. E o desconforto de chegar e não cumprimentar as pessoas com apertos de mão, abraços, um ou dois beijinhos? Também já está bem menos evidente?

Fomos obrigados a alterar muitos processos cerebrais num intervalo de tempo relativamente curto. Em geral, somos provocados por mudanças no ambiente, mas elas ocorrem de forma mais paulatina e são metabolizadas e tratadas aos poucos. De vez em quando uma mudança de cidade, o fim de um relacionamento ou até mesmo o óbito de alguém querido produz abalos importantes – mas, dessa vez, estamos vivendo um monte deles ao mesmo tempo. O sistema emocional acaba sendo mais demandado, e essa demanda excessiva produz efeitos importantes.

Um dos efeitos mais evidentes é que há uma sobrecarga de sistema. Já que precisamos analisar os novos hábitos adquiridos e prestar atenção em novos comportamentos e validá-los do ponto de vista da efetividade adaptativa de cada um deles no novo cenário, a dinâmica do sistema emocional em operar essas validações de padrão pode passar despercebida, mas é um ônus considerável. Tome como exemplo o fato de que durante uma reunião online você passa um tempo grande olhando para várias faces humanas que estão simultaneamente localizadas em uma área do seu campo visual, com alta definição de imagem. Essa área, conhecida como fóvea, tem uma quantidade maior de fotorreceptores e consegue fazer leituras precisas sobre a emocionalidade contida nas faces observadas. Nos contatos presenciais não é possível observarmos com a mesma acurácia visual porque utilizamos a fóvea para focar cada um dos rostos a seu tempo.

Quando as faces estão simultaneamente expostas em uma tela no mesmo campo visual, a fóvea recebe os estímulos de várias expressões faciais para serem processadas de uma só vez. Esse tipo de demanda emocional é semelhante àquela que um orador sofre quando fala em público, situação que é fonte de estresse para todos os que ainda não desenvolveram recursos para enfrentá-la. Além disso, no mesmo momento em que você está processando essa avalanche de informações emocionais de outras pessoas, também pode observar sua própria imagem na tela. Com horas e mais horas de telas em reuniões sucessivas, a dinâmica do sistema emocional revela uma sensação de fadiga que parece estranha, já que muitas das tarefas inerentes a um dia de trabalho no escritório, como os deslocamentos ou o trânsito, não estão acontecendo.

É um cansaço paradoxal. São emoções novas. E os hábitos que eram fonte de alívio e descompressão estão suspensos. Não há previsão de retorno e esse estado de coisas parece se instalar de forma permanente. Um estado sem hábitos. Nele, não queremos nos acostumar com máscaras, mas estranhamos quando vemos alguém sem. Não vivemos mais as situações em que viajar, passear, ir a restaurantes surgem naturalmente em nossas mentes, mas sentimos falta de cada uma delas. A qualquer momento o inesperado pode atingir uma família e provocar perdas inestimáveis. No início da pandemia, queríamos um novo normal para viver. Achamos que poderíamos achar normalidade nisso tudo. Mas, para o sistema emocional, normal é aquilo com que se pode habituar.

Assim, o aclamado novo normal ainda não se instalou. Para ser normal, deve honrar o significado que a palavra tem. Precisa ser capaz de causar habituação. Precisamos poder nos acostumar com a rotina estabelecida. Encontrar pontos de equilíbrio que nos permitam seguir investindo em nossos sonhos e propósitos. Felizmente, estamos resistentes a considerar o atual estado de coisas como efetivamente normal. Só estaremos realmente em algum novo normal quando pudermos reencontrar aqueles modelos normalizados de comportamento que surgem de forma automática e nos levam a uma sala de cinema no fim de uma terça-feira ou o que quer que seja normal para cada um de nós.

Compartilhar:

Artigos relacionados

Os sete desafios das equipes inclusivas

Inclusão não acontece com ações pontuais nem apenas com RH preparado. Sem letramento coletivo e combate ao capacitismo em todos os níveis, empresas seguem excluindo – mesmo acreditando que estão incluindo.

Reaprender virou a palavra da vez

Reaprender não é um luxo – é sobrevivência. Em um mundo que muda mais rápido do que nossas certezas, quem não reorganiza seus próprios circuitos mentais fica preso ao passado. A neurociência explica por que essa habilidade é a verdadeira vantagem competitiva do futuro.

Liderança
29 de setembro de 2025
No topo da liderança, o maior desafio pode ser a solidão - e a resposta está na força do aprendizado entre pares.

Rubens Pimentel - CEO da Trajeto Desenvolvimento Empresarial

4 minutos min de leitura
ESG, Empreendedorismo
29 de setembro de 2025
No Dia Internacional de Conscientização sobre Perdas e Desperdício de Alimentos, conheça negócios de impacto que estão transformando excedentes em soluções reais - gerando valor econômico, social e ambiental.

Priscila Socoloski CEO da Connecting Food e Lucas Infante, CEO da Food To Save

2 minutos min de leitura
Cultura organizacional
25 de setembro de 2025
Transformar uma organização exige mais do que mudar processos - é preciso decifrar os símbolos, narrativas e relações que sustentam sua cultura.

Manoel Pimentel

10 minutos min de leitura
Uncategorized
25 de setembro de 2025
Feedback não é um discurso final - é uma construção contínua que exige escuta, contexto e vínculo para gerar evolução real.

Jacqueline Resch e Vivian Cristina Rio Stella

4 minutos min de leitura
Tecnologia & inteligencia artificial
24 de setembro de 2025
A IA na educação já é realidade - e seu verdadeiro valor surge quando é usada com intencionalidade para transformar práticas pedagógicas e ampliar o potencial de aprendizagem.

Rafael Ferreira Mello - Pesquisador Sênior no CESAR

5 minutos min de leitura
Inovação
23 de setembro de 2025
Em um mercado onde donos centralizam decisões de P&D sem métricas críveis e diretores ignoram o design como ferramenta estratégica, Leme revela o paradoxo que trava nosso potencial: executivos querem inovar, mas faltam-lhes os frameworks mínimos para transformar criatividade em riqueza. Sua fala é um alerta para quem acredita que prêmios de design são conquistas isoladas – na verdade, eles são sintomas de ecossistemas maduros de inovação, nos quais o Brasil ainda patina.

Rodrigo Magnago

5 min de leitura
Inovação & estratégia, Liderança
22 de setembro de 2025
Engajar grandes líderes começa pela experiência: não é sobre o que sua marca oferece, mas sobre como ela faz cada cliente se sentir - com propósito, valor e conexão real.

Bruno Padredi - CEP da B2B Match

3 minutos min de leitura
Cultura organizacional, Liderança
19 de setembro de 2025
Descubra como uma gestão menos hierárquica e mais humanizada pode transformar a cultura organizacional.

Cristiano Zanetta - Empresário, palestrante TED e filantropo

0 min de leitura
Tecnologia & inteligencia artificial, Inovação & estratégia
19 de setembro de 2025
Sem engajamento real, a IA vira promessa não cumprida. A adoção eficaz começa quando as pessoas entendem, usam e confiam na tecnologia.

Leandro Mattos - Expert em neurociência da Singularity Brazil

3 minutos min de leitura
Cultura organizacional, Gestão de pessoas & arquitetura de trabalho
17 de setembro de 2025
Ignorar o talento sênior não é só um erro cultural - é uma falha estratégica que pode custar caro em inovação, reputação e resultados.

João Roncati - Diretor da People + Strategy

3 minutos min de leitura

Baixe agora mesmo a nossa nova edição!

Dossiê #170

O que ficou e o que está mudando na gangorra da gestão

Esta edição especial, que foi inspirada no HSM+2025, ajuda você a entender o sobe-e-desce de conhecimentos e habilidades gerenciais no século 21 para alcançar a sabedoria da liderança

Baixe agora mesmo a nossa nova edição!

Dossiê #170

O que ficou e o que está mudando na gangorra da gestão

Esta edição especial, que foi inspirada no HSM+2025, ajuda você a entender o sobe-e-desce de conhecimentos e habilidades gerenciais no século 21 para alcançar a sabedoria da liderança