Lifelong learning
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Reaprender virou a palavra da vez

Reaprender não é um luxo - é sobrevivência. Em um mundo que muda mais rápido do que nossas certezas, quem não reorganiza seus próprios circuitos mentais fica preso ao passado. A neurociência explica por que essa habilidade é a verdadeira vantagem competitiva do futuro.
Empreendedora, consultora e cofundadora da People Strat. Isabela conecta neurociência, comportamento e tecnologia para desenvolver pessoas e culturas mais humanas e inovadoras. Embaixadora de Inovação dos Hubs Learning Village e Porto Maravalley; e Top 3 Mulheres em Tecnologia pela Meta Ventures, acredita que aprender é o maior ato de liberdade e transformação.

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No discurso da inovação, da liderança, da educação, estamos ouvindo o tempo todo que “a grande habilidade do futuro é reaprender”: mudar hábitos, atualizar crenças, aprender a lidar com tecnologias que não existiam ontem, conviver com três ou quatro gerações no mesmo time, ajustar nossa forma de trabalhar num mundo híbrido, acelerado, instável.

Tudo isso é verdade. Mas tem um detalhe importante: reaprender não é uma invenção da Era digital. É uma habilidade biológica que sempre esteve em nós. O que mudou não foi a nossa capacidade – foi a urgência de usar essa capacidade de forma consciente.

Decidi escrever esse artigo inspirada no livro “O cérebro que se transforma”, de Norman Doidge – que ainda estou na metade, mas são tantos insights que não quero esperar o final – e em eventos que participei esse ano onde sempre me perguntavam sobre essa “habilidade do futuro” de reaprender.

Então vamos lá. Por muito tempo, a ciência acreditou numa ideia bem diferente da atual: que o cérebro era relativamente fixo na vida adulta. Crianças aprendiam, adultos estabilizavam. Essa visão dominou a psicologia, a medicina e a educação durante décadas, até que pesquisadores começaram a observar algo que não cabia nesse modelo: cérebros adultos mudavam. E mudavam muito.

Nos anos 1960, 70 e 80, estudos pioneiros de cientistas como Michael Merzenich, Paul Bach-y-Rita e, mais tarde, trabalhos de Eric Kandel sobre memória começaram a mostrar que o cérebro é capaz de reorganizar suas conexões continuamente, em resposta à experiência, ao treino e ao ambiente.

Essa capacidade recebeu um nome que hoje aparece em livros, palestras e artigos, às vezes de forma quase banalizada: neuroplasticidade.

O livro de Norman Doidge, que estou lendo, certamente ajudou a popularizar esse conceito ao narrar histórias de pessoas que recuperaram funções perdidas após acidentes, reverteram limitações consideradas irreversíveis ou que aprenderam a compensar déficits congênitos por meio de programas intensos de estimulação e treino. Ele descreve casos clínicos baseados em pesquisas de Merzenich e outros neurocientistas, mostrando algo que hoje parece óbvio, mas por muito tempo foi quase heresia: o cérebro adulto é plástico, adaptável e capaz de se reorganizar fisicamente.

Pois bem, quando falamos em reaprender, é disso que estamos falando – mesmo que não usemos esses termos.


Quais processos acontecem durante um (re)aprendizado?

Desde que comecei a estudar sobre aprendizagem e neurociência, gosto de pensar em reaprender como reorganizar o nosso mapa mental. “Mapa mental” aqui não é um conceito técnico da neurociência, mas uma metáfora útil para aquilo que, em linguagem acadêmica, chamamos de redes neurais: circuitos de neurônios conectados, que se ativam juntos e sustentam nossos padrões de pensamento, percepção, emoção e comportamento.

Do ponto de vista neurocientífico, todo aprendizado – e todo reaprendizado – envolve alguns processos básicos:

  • Fortalecer sinapses existentes: conexões que já existem ficam mais eficientes com o uso repetido, num processo descrito pela teoria da “long-term potentiation” (LTP), que Kandel e outros pesquisadores ajudaram a consolidar como um dos pilares do aprendizado e da memória.
  • Criar novas conexões (sinaptogênese): quando entramos em contato com experiências, informações ou comportamentos realmente novos, o cérebro literalmente constrói caminhos que antes não estavam lá.
  • Enfraquecer circuitos antigos (poda sináptica): rotas que deixam de ser usadas tendem a ser enfraquecidas; o cérebro economiza energia e libera espaço para padrões mais úteis.
  • Reconfigurar rotas funcionais: áreas diferentes podem assumir funções que, originalmente, eram desempenhadas por outras – algo muito descrito em casos de reabilitação neurológica, mas que também acontece em reorganizações mais sutis, no dia a dia.


E o ambiente de trabalho com isso?

Quando falamos de “reaprender” no contexto do trabalho, não estamos falando de algo abstrato ou metafórico. Estamos falando justamente disso: criar, reforçar, enfraquecer e reorganizar circuitos neurais para atualizar o nosso mapa mental em relação a uma realidade que mudou.

Isso vale tanto para alguém que está aprendendo a trabalhar com inteligência artificial, quanto para quem está reaprendendo a dar feedback, a colaborar com pessoas de outras gerações ou a tomar decisões num ambiente de incerteza.

Se fôssemos olhar esse processo em câmera lenta dentro do cérebro, poderíamos descrever algo assim:

Primeiro, algo no ambiente sinaliza que o padrão antigo não funciona tão bem quanto antes. Pode ser um erro recorrente, um desconforto, um resultado que não vem. Em termos de neurociência, é como se o cérebro detectasse um erro de previsão: o que eu esperava que acontecesse não está acontecendo. Isso acende um estado de atenção.

Depois, começamos a experimentar alternativas: novas ferramentas, novos comportamentos, novas formas de pensar sobre o mesmo problema. Essas primeiras tentativas são instáveis, exigem esforço, parecem “não naturais”. Isso corresponde ao início de novos circuitos fracos, sinapses recém-formadas, ainda frágeis.

Com repetição e feedback – interno (percebo que estou melhorando) e externo (recebo retorno do contexto, das pessoas, dos resultados) – esses circuitos se fortalecem. A longo prazo, esse fortalecimento estrutural e funcional é o que chamamos de neuroplasticidade de longo prazo: o cérebro muda de forma mais duradoura.

Por fim, o novo padrão se estabiliza. Aquilo que exigia esforço consciente começa a acontecer quase automaticamente. O velho jeito de fazer as coisas ainda pode existir em algum lugar, mas já não é a rota principal; virou um atalho secundário ou foi tão pouco usado que perdeu força.

É aqui que podemos dizer, com alguma precisão: reaprendemos.

Quando um líder, por exemplo, começa a sair do modo “responder tudo no impulso” para o modo “pausar, perguntar, escutar e depois decidir”, isso não é apenas maturidade emocional ou competência comportamental. É também uma nova rede neural se fortalecendo. Quando alguém que sempre trabalhou no presencial passa a se organizar bem no trabalho híbrido, com clareza, disciplina e limites, também existe uma reorganização neural por trás.

Em outras palavras: reaprender é neurociência aplicada à nossa vida cotidiana.


Por que esse olhar importa especialmente no contexto em que estamos vivendo agora?

Durante muito tempo, boa parte dos estudos que comentei sobre neuroplasticidade esteve concentrada na área da saúde: reabilitação de lesões, recuperação de funções, compensação de déficits neurológicos, tratamento de transtornos. Isso segue sendo crucial. Mas o que estamos começando a entender – e a trazer, ainda timidamente, para o mundo corporativo – é que essa mesma capacidade de reorganização pode (e deve) ser utilizada de forma intencional para outras dimensões da vida: trabalho, aprendizagem, decisões, relações.

Quando dizemos que “as habilidades do futuro” envolvem reaprender, não estamos falando só de fazer cursos, colecionar certificados ou mudar de carreira. Estamos falando de neurociência aplicada no nosso dia-a-dia ao ampliar o nosso repertório de caminhos internos: sinapses, rotas de pensamento, formas de perceber o outro, estratégias de ação.

Quanto mais diverso é esse mapa mental, mais opções temos na hora de tomar decisões difíceis, inovar, lidar com o inesperado – tudo que o mundo de hoje nos traz cada vez mais. Isso é saudável do ponto de vista biológico – porque mantém o cérebro ativo, flexível, responsivo – e também do ponto de vista social e comportamental, porque nos dá alternativas além do piloto automático.

É aqui que entram as lideranças e os ambientes de trabalho como fatores cruciais.

Se reaprender é reorganizar o cérebro, então a pergunta que líderes e organizações precisam se fazer não é só “quais treinamentos vamos oferecer este ano?”, mas que tipo de ambiente estamos criando para que a neuroplasticidade aconteça a favor das pessoas, e não contra elas?

De tudo o que eu já vi e vivi na prática e, também, a partir do que a literatura de gestão nos traz (algumas referências em especial que gosto: Mihaly Csikszentmihaly, Simon Sinek e Michelle Weise), diria que ambientes que favorecem esse processo costumam ter alguns elementos em comum:

  • Desafios na medida certa: não tão fáceis a ponto de entediar, nem tão difíceis a ponto de paralisar.
  • Espaço para experimentar: testar hipóteses, errar, ajustar e tentar de novo – sem punição imediata.
  • Feedback que ensina: não só avaliar, mas ajudar o cérebro a entender o que funcionou, o que não funcionou e por quê.
  • Diversidade real de perspectivas: outras gerações, histórias, formações, formas de pensar – tudo isso expande o mapa mental coletivo.
  • Tempo para refletir: porque a consolidação de novas rotas neurais não acontece só enquanto “fazemos”, mas também quando paramos para integrar.


Do outro lado, ambientes que sufocam a neuroplasticidade tendem a produzir o oposto: rigidez, medo, repetição acrítica do que sempre foi feito, esgotamento e cinismo.

A boa notícia é que não existe idade limite para reconfigurar o nosso mapa mental. As evidências científicas mostram que o cérebro segue plástico ao longo de toda a vida, embora a forma de potencializar essa plasticidade mude com o tempo: crianças aprendem com uma velocidade e intensidade; adultos precisam de mais repetição, contexto, motivação e senso de propósito. Mas a capacidade de transformar rotas internas continua ali.

No fim das contas, quando falamos em reaprender no contexto do trabalho – seja em relação à inteligência artificial, ao trabalho híbrido, à colaboração com outras gerações ou à própria forma de liderar – estamos falando de algo muito concreto:usar, de forma intencional, uma habilidade que a nossa biologia já nos deu.

Reaprender não é um slogan bonito. Não é uma invenção do mundo corporativo.
É um processo neurocientífico real.
E a neuroplasticidade é a chave que conecta a teoria à prática.

Talvez o convite, para todos nós, independente do cargo, seja se perguntar: Eu estou cuidando de ampliar meu mapa mental, dado que é ele vai me dar condições de desempenhar e crescer num mundo cada vez mais dinâmico e incerto? 

E, para quem lidera pessoas hoje, o convite é olhar para o time e para si mesmo com essa pergunta em mente:

Que tipo de mapa mental estamos alimentando aqui dentro – e quais caminhos novos estamos dispostos a construir?

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